No segundo trimestre de 2023, a tradicional empresa de tecnologia HP reportou um faturamento de US$ 12,9 bilhões entre suas duas divisões, o que representa uma queda de 22% em relação ao mesmo período de 2022 – desde 2015, a empresa atua em duas frentes, HP Inc (computadores pessoas e impressoras) e Hewlett Packard Enterprises (sistemas pessoais).
Segundo analistas, um dos principais motivos tem sido a queda na demanda por computadores pessoais (PCs) pós-pandemia. Para uma empresa que desempenhou um papel fundamental em tornar computadores e impressoras mais acessíveis para o público médio – sendo líder no segmento de PCs em 2008 – ao longo de seus quase 83 anos de história, a HP agora está lutando para acompanhar a rápida evolução tecnológica que ajudou a moldar.
Ainda assim, o CEO Enrique Lores acredita em uma recuperação no segundo semestre deste ano, impulsionada pelo início do ciclo escolar no hemisfério norte (geralmente na metade de agosto) e pela temporada de férias de final de ano. A HP também vem investindo no universo de Inteligência Artificial (IA), mostrando que o espírito inovador característico de seus fundadores ainda circula nos corredores da empresa.
Neste estudo de caso, mostraremos como estratégia, inovação e sobretudo cultura organizacional fizeram com que a HP perseverasse durante mais de 8 décadas e se tornasse um dos nomes mais importantes da história do setor de tecnologia.
Em 1934, os estadunidenses William “Bill” R. Hewlett e David Packard celebravam seus diplomas em Engenharia Elétrica pela renomada Universidade de Stanford. Três anos depois, na cidade de Palo Alto, Califórnia, com um capital inicial de US$ 538 (cerca de US$ 11.800 nos valores atuais), os dois alugaram uma garagem e iniciaram sua jornada empreendedora, dedicando apenas meio período de seu dia. No ano seguinte, a parceria se tornou oficial e nascia a Hewlett-Packard (HP).
Com foco em lâmpadas e osciladores de áudio – circuitos eletrônicos que produzem sinais eletrônicos repetitivos sem requerer a aplicação de um sinal externo –, a empresa teve um começo promissor. Ainda em 1939, seu oscilador de áudio HP 200A chamou a atenção de Bud Hawkins, então Engenheiro de Som Chefe da Walt Disney Studios. Impressionado, ele comprou 8 unidades que foram utilizadas no histórico longa-metragem de animação “Fantasia”, lançado em 1940.
A empresa também ganharia certo destaque durante a Segunda Guerra Mundial (na qual Bill Hewlett serviu como oficial para o United States Army Signal Corps) pois desenvolveu, junto ao Laboratório de Pesquisa Naval dos Estados Unidos, “tecnologia anti-radar e fusíveis avançados de projéteis de artilharia”. Esses projetos aumentaram as vendas da HP para US$ 1 milhão já em 1943.
O período de guerra também foi um marco importante para algo que posteriormente foi, por muitos anos, um dos pontos mais admiráveis da empresa: sua cultura organizacional.
Esse espírito inovador, de fato, foi o responsável por alavancar a receita da empresa nos anos pós-guerra. Através de uma estratégia de diversificação de produtos, as receitas da HP chegaram a US$ 1,5 milhão em 1947. Três anos depois, a organização tinha um portfólio de 70 produtos, uma força de trabalho de 143 pessoas e um faturamento de US$ 2 milhões.
No final dos anos 1950, surgia a Fairchild Semiconductor, pioneira da indústria de semicondutores – a partir dela nasceram Intel e AMD. Seguindo seu instinto inovador, a HP também passou a investir no setor no começo da década seguinte, através de parcerias com os conglomerados japoneses Sony e Yokogawa Electric.
A estratégia da empresa se mostrou equivocada pelo fato que terceirizar chips para o Japão era mais caro do que produzi-los nos Estados Unidos. A companhia, no entanto, se manteve persistente nessa nova investida e eventualmente entrou no segmento que a levou ao topo: o da computação.
Em 1966, a HP lançou os modelos 1000 e 2100, minicomputadores usados primariamente em aplicações de negócios. No mesmo ano, inaugurou o HP Laboratories, hoje um dos principais laboratórios de tecnologia do mundo.
Com avanços no ambiente tecnológico, a empresa decidiu entrar na computação empresarial, simbolizando uma grande mudança na estratégia da HP. Em 1972, era lançado o minicomputador HP 3000, que 6 anos depois se tornou o primeiro computador a ser instalado na Casa Branca.
O crescimento rápido da companhia fez com seus fundadores estabelecessem uma nova estrutura altamente descentralizada nos anos seguintes, permitindo que cada uma das divisões da empresa conduzisse sua própria pesquisa e desenvolvimento.
Entre erros e acertos, Bill Hewlett deixou a cadeira de CEO e se juntou a David Packard no conselho da empresa em 1978. O escolhido por ambos para ocupar o cargo mais alto da companhia foi John A. Young, que havia construído sua carreira na empresa.
Sob nova direção, a HP finalmente decidiu aventurar-se no segmento de PCs, lançando o HP-85 em 1980 e posteriormente o HP-150; ambos fracassaram no mercado. Durante essa década, inclusive, a gigante de tecnologia começou a perder espaço em seus principais campos de ciência e engenharia para organizações rivais como Sun Microsystems, Inc., Silicon Graphics, Inc. e Apollo Computer, todas especializadas em computadores “estação de trabalho” (workstation).
A reviravolta começou em 1989 com a aquisição da Apollo Computer, tornando a HP a principal fabricante de estações de trabalho, posição que dividia com a Sun Microsystems e posteriormente a Dell. Dois anos depois, as estações de trabalho Series 700 foram lançadas e coletaram avaliações positivas pelo mundo dizendo que “as máquinas estavam vários anos à frente de seu tempo”.
Em 1992, Lewis E. Platt assumia a cadeira de CEO da empresa. Nessa época a participação da HP no mercado de computadores pessoais era de apenas um por cento, com os PCs representando apenas 5,7% da receita total da empresa (US$ 16,4 bilhões). Após 3 anos, a HP foi atrás do mercado de PCs domésticos com o lançamento da linha Pavilion.
Com preços não mais do que 5% acima dos modelos similares no mercado, a HP contribuiu para que os PCs se tornassem mais comuns nos lares estadunidenses na época em que a internet discada vinha se tornando acessível. Isso fez sua participação de mercado disparar e a empresa foi a fabricante de PCs que mais cresceu no mundo em 1995.
Com o novo milênio, veio uma nova expansão. Em 2002, a HP adquiriu uma de suas maiores rivais, a Compaq Computer Corporation. Os benefícios da fusão, no entanto, demoraram para acontecer – e custaram o cargo da então CEO Carly Fiorina três anos depois.
Quando os resultados se materializaram, a Hewlett-Packard tornou-se a primeira empresa de tecnologia a exceder US$ 100 bilhões em receita de vendas em um ano fiscal (2007). Um ano depois, a empresa conquistou o primeiro lugar no mercado de PCs, estações de trabalho e servidores, tornando-se a principal empresa de computadores do mundo.
No início dos anos 1980, enquanto buscava seu espaço no mundo dos PCs, a HP decidiu se aventurar no ramo das impressoras. A HP LaserJet foi lançada em 1984 e recebeu ótimas críticas, rapidamente se tornando o produto de maior sucesso da empresa na época.
A HP conseguiu transformar o processo de impressão, que era caro e consumia muita energia, em algo que poderia ser feito na mesa de um escritório. Em 1988, vendo como a impressão se tornava um de seus pilares de venda, a empresa introduziu a HP DeskJet, uma das primeiras impressoras a jato de tinta focadas no mercado consumidor.
Três anos depois, a HP democratizou o acesso à impressão colorida para residências e pequenas empresas, com o novo modelo da linha Deskjet, apresentado em 1991. Seus cientistas e engenheiros conseguiram compactar os cartuchos de tinta coloridos de modo que tornou possível a impressão em cores sem custos muito elevados.
No decorrer da década de 1990, outro ponto de destaque foi o lançamento da HP OfficeJet, primeira impressora multifuncional (impressora, copiadora e fax), com um design não muito diferente das onipresentes máquinas multifuncionais disponíveis nos dias atuais. Em 1997, no entanto, as linhas de impressoras da HP, especialmente na área de jato de tinta, estavam sendo prejudicadas pela concorrência de novos rivais de baixo custo e pelas margens decrescentes nas áreas de PCs e impressoras – impactando negativamente a rentabilidade da empresa.
Nos últimos 23 anos, a HP introduziu a HP Photosmart Premium (2010), a primeira impressora doméstica conectada à web do mundo, apresentou a HP Jet Fusion, sua primeira impressora 3D, e adquiriu a divisão de impressão da Samsung Electronics por US$ 1,05 bilhão em 2017. Em 2022, a empresa faturou US$ 18,9 bilhões entre suprimentos para impressoras e venda de impressoras comerciais e de consumo.
Segundo a International Data Corporation, a HP finalizou o último trimestre de 2022 com participação de 34,7% do mercado global de impressão.
A interação entre a cultura e a estratégia da HP teve um papel vital nos sucessos e fracassos da empresa. Para a HP, foi “mais fácil” sobreviver às várias mudanças tecnológicas nas últimas 8 décadas do que perdurar perante os desafios culturais resultantes de algumas dessas mudanças.
Moldada e mantida por seus cofundadores Bill Hewlett e Dave Packard, a essência da cultura da HP – conhecida como “HP Way” – pode ser expressada em alguns objetivos diretos, incluindo crescimento autofinanciado (também conhecido como bootstrapping), produtos altamente diferenciados, respeito pelos colaboradores e governança corporativa.
Em 1957, após abrir seu capital na Bolsa de Valores, a companhia começou a oferecer opções sobre ações (stock options) para todos os colaboradores com mais de 6 meses de empresa e, em 1967, a HP se tornou a primeira empresa estadunidense a implementar o horário flexível nos Estados Unidos. Seus funcionários podiam chegar mais cedo ou mais tarde, sem que houvesse reprimendas, desde que cumprissem toda a carga horária e estivessem presentes durante a principal janela de tempo para produtividade (9h30 às 15h30). A mudança custou pouco para a empresa e colaborou com os seguintes resultados:
À medida que a HP crescia, Bill Hewlett e Dave Packard criaram divisões independentes para incentivar a inovação e a responsabilidade (ownership, também conhecido como agir como dono), deixando a estratégia geral para o CEO e o conselho administrativo. O “HP Way”, sob Bill e Dave, foi flexível o suficiente para ajudá-los a conduzir a empresa através das mudanças, de tubos de vácuo para transistores para, posteriormente, circuitos integrados. Ao incorporar todas essas novas tecnologias, a HP se transformou em uma empresa líder global em testes e medições.
Sob o comando de John Young, a HP viu a necessidade de desenvolver sistemas de microprocessadores de 32 bits (padrão da indústria). Para realizar esse enorme esforço, Young assumiu o controle dos orçamentos e da autonomia que os chefes de divisão da HP valorizavam, entrando em conflito com o antigo modelo de divisão independente da HP e visto por muitos como uma violação ao HP Way.
Os investimentos autorizados por Young no sistema de 32 bits prejudicaram os resultados da HP. O preço das ações da empresa teve desempenho inferior ao de seus concorrentes. Packard decidiu envolver-se novamente e forçou Young a simplificar o modelo operacional da HP para ser mais consistente com a tradição da HP.
Quando o veterano da HP Lew Platt assumiu o posto de CEO em 1992, ele recebeu ordens de Packard para “restaurar o estilo HP”. Para isso, ele instituiu um modelo operacional ainda mais descentralizado que delegou a estratégia às unidades operacionais. Um de seus primeiros erros, no entanto, foi não desenvolver uma estratégia corporativa geral, que permitisse manter essa autonomia, mas garantir a governança na companhia.
Apesar de contar com bons resultados e manter enorme prestígio no mercado, a HP perdeu o surgimento da internet e os computadores padrão da indústria “Wintel” (parceria entre o Microsoft Windows e Intel) começaram a substituir os sistemas de arquitetura proprietária da HP, reduzindo a diferenciação e os lucros da HP. A falta de uma estratégia geral e os fracos controles corporativos criaram grandes conflitos entre as divisões. O desempenho da HP ficou para trás em comparação com seus concorrentes alimentados pela bolha da internet.
Platt então propôs dividir a Hewlett-Packard em quatro empresas independentes (teste e medição; impressoras; sistemas de computação; e PCs). O conselho de administração da HP, sem contar com a visão de Packard (que faleceu em 1996) e de Hewlett (que estava doente), decidiu separar apenas o setor de teste e medição e, em 1999, procuraram um novo CEO de fora. No final da era Platt, a HP batalhava pela falta de uma estratégia geral, mas mantinha intacta a maior parte da cultura “HP Way”.
Os próximos quatro CEOs da HP, todos de fora, mudaram drasticamente a cultura da empresa. Seus mandatos foram marcados por uma forte estratégia hierárquica (top-down), crescimento por meio de grandes aquisições e demissões contínuas para melhorar os lucros.
Sob a liderança de Whitman, a HP melhorou seu desempenho, mas sua cultura permaneceu uma mistura de elementos. Em 2015, sem conseguir alavancar o crescimento da organização, ela decidiu dividir a HP em duas empresas: HP Inc (PCs e impressoras) e Hewlett Packard Enterprises (sistemas pessoais).
A inovação fez parte da história e do crescimento da HP, abrindo espaço para testes e assumir riscos. Além de seus computadores e impressoras, a empresa introduziu inúmeros produtos de sucesso. Um dos casos mais memoráveis veio com a HP-35, a primeira calculadora de bolso, que forçou a obsolescência da antiga régua de cálculo. Durante muitos anos, a marca se tornou referência em calculadoras científicas.
Em contrapartida, com o objetivo de diversificar seu portfólio, a HP pagou US$ 1,2 bilhão pela Palm, fabricante norte-americana de assistentes digitais e smartphones, e lançou seu tablet TouchPad, com o intuito de competir no setor de dispositivos móveis – as iniciativas foram descontinuadas em 2011, um ano após serem oficializadas.
Mesmo com a recente divisão da empresa, o problema fundamental é que a indústria de tecnologia tem abandonado cada vez mais o hardware e colocando suas energias em Big Data, computação em nuvem, Machine Learning e Inteligência Artificial (IA). Mesmo a Apple, que lucra bilhões de dólares por ano na venda de celulares, já vem observando faturamentos bilionários por meio de seus serviços digitais.
A falta de investimento em inovação já vinha sido observada por Walter Hewlett, filho do fundador Bill Hewlett e ex-membro do conselho da HP, desde a fusão com a Compaq. Para ele, “o erro fundamental por trás dessa transação foi a percepção da necessidade de fazer algo em escala, ao invés de buscar o sucesso do jeito que a HP fez no passado: com foco e inovação”.
Em 2019, a Xerox demonstrou interesse em adquirir a divisão de PCs e impressoras (HP Inc) da empresa, porém desistiu da compra em 2020. Um ano depois, a companhia anunciou a compra da divisão de games da Kingston Technology Company “para impulsionar o crescimento em seus negócios de sistemas pessoais”, no qual jogos e periféricos (fones, teclados, mouses etc.) são segmentos atraentes; a HP também vem investindo em soluções e oferecendo suporte para esportes eletrônicos (esports) universitários nos Estados Unidos.
Em maio de 2023, o CEO Enrique Lores disse que a HP está desenvolvendo uma série de PCs habilitados para IA, prontos para “revolucionar a maneira como os usuários interagem com seus computadores”.
“Estamos trabalhando com todos os principais fornecedores de software e silício para redesenhar a arquitetura de um PC”, afirmou Lores em entrevista à CNBC. “Nunca vi uma oportunidade como esta para realmente impulsionar a inovação e um novo tipo de necessidade do cliente que realmente achamos que vai ser fundamental".
Com a integração de IA, os PCs reduzirão drasticamente o tempo e o esforço necessários para realizar tarefas que envolvem análise de dados e fornecerão informações e recomendações valiosas para seus usuários, garante o CEO.
A HP e seu “HP Way” moldaram várias gerações de empresas no Vale do Silício e pelo mundo afora. A famosa garagem localizada no número 367 da Addison Avenue, em Palo Alto, na qual Bill Hewlett e Dave Packard iniciaram a HP foi declarada patrimônio histórico e “berço do Vale do Silício” pelo Estado da Califórnia em 1987. O local foi inscrito no Registro Nacional de Lugares Históricos dos Estados Unidos em 2007.
A empresa foi pioneira na introdução de boas práticas de trabalho como horários flexíveis, vestimenta casual e stock options para funcionários e tornou-se um ótimo estudo de caso sobre como construir uma série de produtos de sucesso e criar inovação escalável em várias unidades de negócios.
Ironicamente, seu declínio é consequência de uma série de ações envolvendo falta de inovação e mudanças constantes na liderança e na cultura na era pós-Hewlett e Packard, prejudicando a imagem da empresa junto aos consumidores e, especialmente, seus colaboradores. A aquisição de muitas companhias, sem o devido cuidado para que os "novos funcionários" incorporassem a cultura organizacional, os afastou do protagonismo e do espírito de dono que levaram a HP ao sucesso.